ela não queria mais viver

"ela não queria mais viver" explicou o meu irmão.

ele narrava aquela que, pra ele, foi uma das cenas mais devastadoras em vida. a imagem da nossa avó, com quem ele cresceu, internada em um hospital, inchada, machucada e irreconhecível. de fato, eu não cheguei a vê-la, mas vi apenas uma foto dela e lembro como vê-la tão ferida me quebrou por dentro por dentro. ter visto aquela senhora tão leve, sensível e alegre roída pela idade e pela doença. naquele momento, senti como se eu já a tivesse perdido, como se ela estivesse perdida pra sempre e nada nunca mais fosse ser o mesmo.

"ela não queria mais viver" explica o meu irmão "caso ela quisesse, teria saúde pra viver mais uns bons anos"

aquela cena derrubou o meu pai, e meu pai é um dos homens mais fortes que eu conheço. tão forte que eu nem sei se isso é bom. daqueles que não mostram e não falam sobre seus sentimentos. mas ter visto a própria mãe machucada de tantos jeitos, pra além do recuperável, derrubou-o na cama por dias. a doença da minha vó fez meu pai chorar em posição fetal como uma criança pequena. na mesma noite, ele passou mal e teve que ser atendido em um pronto-socorro. e eu que nunca tinha visto ele tão frágil, e que nunca tinha visto minha vó tão indefesa, e eu, que sentia que minhas referências eram tão fortes e que sempre estariam ali por mim. todas as minhas referências perdiam as forças diante dos meus olhos e eu senti como se eu fosse muito frágil, como se fôssemos todos muito frágeis. como se o solo sob os meus pés pudesse ruir a qualquer momento e aquilo fosse inevitável, poderia acontecer a qualquer momento.

"ela não queria mais viver" explicou pacientemente o meu irmão, e acrescentou "caso ela quisesse, teria saúde pra viver mais uns bons anos. mas ela não aguentava mais"

minha vó perdeu as forças depois do falecimento do meu vô, com quem ela viveu por cinquenta anos. eu me lembro das noites com ela, quando ela nos visitava em casa. ela gostava de jogar dominó, e batia de brincadeira no meu bumbum quando passava por mim. a gente gostava de conversar à noite, debaixo da coberta, quando rezávamos juntos e ela me contava histórias sobre os netos que ela mais gostava... mas eu era criança demais pra entender que ela não aguentava mais. que ela não queria mais. eu não conseguia ver, não podia enxergar. nunca vi aquela ferida crescente na minha vó, que por fim a matou. e provavelmente também não teria feito diferença se eu percebesse  mas me dói não ter percebido. e me dói pensar que enquanto estávamos rezando e agradecendo, ela podia estar pensando que não queria mais... ela podia estar pedindo pra ir embora.

e por fim, um dia, ela foi mesmo. mas ficou irreconhecível no processo. uma cena duríssima de ver. e uma lembrança de tudo que a vida é capaz de fazer com a gente.

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