Tratado da minha não-existência

às vezes eu me puno por estar feliz. e passei um bom tempo tendo sucesso nisso, com essa história de me punir, se tudo dava errado na minha vida pelo menos eu me cortava todos dias com minha imagem no espelho, o espelho era a navalha, e cada sinal de vida, cada novo dia era um corte que eu fazia na minha pele.

acontecia de eu ter dias melhores e acordar ligeiramente mais feliz, mas logo eu tratava de deixar de sorrir. como eu poderia? como eu ousava acordar feliz em meio ao lixo que me rodeava, o lixo e a toxicidade, como eu poderia sorrir se eu não tinha rosto, se cada rejeição consumava o meu apagamento como sujeito e era um atentado contra a minha existência, todas as rejeições, toda a exclusão, quem nunca me amou como eu sou, todas as vezes em que tive que me esconder dos meus pais, quando tive que me esconder do amor e fingir que não doía, todo o nunca ter feito parte disso e dessa comunidade humana enquanto eu tentava desesperadamente existir. existir pra alguém. eu conversava com minha psicóloga sobre a dificuldade de existir e ela me completou tão bem que não teria completado tão bem meu sentimento se a frase tivesse saído de mim: "e aí você prefere não existir. porque é mais fácil do que lutar pela sua existência, a que você tem que reafirmar o tempo inteiro".

é claro que as pessoas sabem da minha existência. que eu moro na rua tal, na casa tal, com mais tantas pessoas. estudo o curso tal, trabalho com tal coisa, sei fazer tal coisa. é a minha ficha técnica. 

o que eu quero saber mesmo é se algum dia alguém vai perceber que eu existo.

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