O coração jamais habitado

eu sou uma criança aqui dentro, uma criança que cresceu e ainda não enjoou de doces. eu comprei alguns pirulitos de morango e percebi que hoje sou ainda mais impaciente do que eu era quando criança. em vez de aproveitar cada segundo do corante e do açúcar se dissolvendo na minha boca, eu mordi todos com fúria. uma fúria calculada, claro, a fim de evitar acidentes dentários. quebrei todos na minha boca e não se passaram muitos minutos quando não havia mais pirulitos, nem um sequer pra contar a história.

eu estava conversando com você enquanto mordia os pirulitos. aliás, desconfio que os mordi com tanta raiva e gosto porque era com você que eu falava. nós nunca conversamos assim, desse jeito, horas sem parar. eu não sabia por que me torturava com aquilo. eu queria encerrar logo a conversa pra não ter que falar mais com você, mas você demorava pra responder e eu não tinha chance e quando você respondia vinha com outros assuntos, e eu me sentia como se ufa, que bom que você ainda quer falar comigo, mas é péssimo.

ficaram vários pedaços daquele doce grudados nos meus dentes e eu gostaria de ter aproveitado melhor o sabor dele. gostaria de estar aproveitando melhor o sabor da vida, mas em vez disso sento aqui e tenho raiva de mim e de você, porque amo você e você nunca gostou de mim na mesma medida e nada garante que vai gostar, então não sei por que eu ainda me iludo e o universo ainda me faz conviver com você, todas as vezes que tentei fugir, que tentei me afastar e me desvencilhar, eu entrei mais na sua vida, entrei e me perdi, como um morto-vivo que é enterrado de cabeça para baixo, acorda e quer cavar para encontrar a saída, mas cava mais a própria sepultura.

eu nem sei dizer porque o amor é tão importante assim pra mim, porque raios estar só me aflige tanto, acho que é porque eu me sinto mais do que só, porque só eu sempre fui, sempre me bastei, sempre fui sozinho, tinha alguns poucos amigos no máximo, hoje acho que nunca conheci tantas pessoas e hoje tenho muito mais amigos com quem posso contar do que há dez anos atrás, mas me sinto completamente sozinho. solidão, é como chamam, como se o tempo estivesse passando e me deixando para trás e não tem ninguém comigo, eu sou uma ilha isolada, desvisitada e fora de alcance e que não possui qualquer ponte com outras ilhas, acho que o amor é importante pra mim porque eu não tenho nem mesmo a minha família, cuja relação é estremecida e frágil por conta da minha sexualidade, eu abandonei qualquer tipo de religião e elas me abandonaram também e confesso que nenhum vício mais me satisfaz, eu não tenho ninguém, mais do que nunca eu só tenho a mim mesmo. mas eu queria mesmo que o amor não fosse assim tão importante porque seria mais fácil, mais que tudo, queria que o seu amor não fosse assim tão importante. agora mesmo, enquanto escrevo esse texto, você me visualiza e não me responde, não responde a mensagem que eu deveria no máximo ter salvado como rascunho.

queria que meu amor por você fosse como um balão que eu poderia deixar escapar, um amor que eu poderia facilmente soltar na imensidão do universo para seguir com a minha vida, como sempre, mas acho que na verdade o balão sou eu, eu sou o balão que você e tantos outros soltaram na imensidão do céu e eu não me encontro de jeito nenhum, não sei por que raios estou aqui e por que me sinto dessa forma, nunca habitei esse planeta e jamais fui habitado.

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