A caminhada solitária

hoje a realidade é uma inimiga que eu não quero confrontar. não por covardia ou por não querer admitir que existe somente ela e que todo o resto é invenção minha. é que eu preciso de tempo pra me reajustar à realidade. já faz muito tempo que não me sinto ajustado, mas agora é pior. é como se abandonar você e abandonar a ideia de você tirasse de mim a minha perspectiva de futuro e agora eu tivesse que bolar outra. eu preciso de um outro futuro, de repente reconstruir meu edifício em outra terra onde o céu seja de uma cor diferente. fico pensando em todas as coisas que eu quis fazer com você e que não vão ser nunca nada além de invenções minhas. eu penso nas viagens que poderíamos fazer juntos, nas festas que frequentaríamos, nas tardes comendo juntos um lanche gorduroso na nossa lanchonete favorita, rindo sobre a vida e estendendo a mão um para o outro quando uma fraqueza falasse mais alto, quando batesse a vontade de chorar sem motivo ou por algum motivo específico. como faz parte da vida, haveria aqueles dias em que cuspiríamos fogo pela casa e correríamos o risco de nos ferir, mas mesmo nesses dias sonhei que o amor falaria mais alto.

abandonar você foi me abandonar também, abandonei meu futuro em uma estrada, fechei a via, menos uma possibilidade, mais uma dor para a coleção, a coleção de dores na prateleira que me visitam e me devoram e querem me dizer que eu não sou bom o suficiente, que nunca vou ser bom o suficiente para alguém. você pra mim foi só mais um e eu pra você talvez nem isso. não vou permitir nunca que alguém diga que eu não tentei, porque em todas vezes em que eu me aproximei de você, caramba, eu me sentia mais sozinho. eu sempre me sentia mais e mais sozinho, às vezes meio reduzido, como se eu estivesse me diminuindo para quem sabe ficar à sua altura e assim quem sabe você olhasse nos meus olhos e não pra qualquer outra parte do meu corpo, quem sabe assim você me visse como um igual. eu não vou deixar ninguém dizer que não tentei, porque pra eu te abandonar, nossa, eu já estava me sentindo abandonado, já tinha sido abandonado muito antes.

é que você é silencioso e não faz barulho quando entra ou quando sai e eu nunca saberia dizer quando você estivesse comigo e quando não estivesse. já eu faço muito barulho, tudo pra mim é estrondoso, eu não me ajusto mesmo à realidade, enquanto eu esbarro e cambaleio você se camufla, se esconde, você julga como um bicho à espreita, você saiu e eu não vi nem ouvi, se é que você algum dia entrou, eu nem notei a sua ausência, você nunca se fez presente, nunca fingiu dar a mínima pra mim, se é que você dá a mínima pra alguém, se é que se importa com algo que não seja o seu doutorado. certo você, tem um futuro à vista, um diploma quase na mão. recorra a ele quando estiver se sentindo sozinho.

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