Mágoa

O horário de dormir é um horário sagrado. Não queremos ser observados. Depois que fechamos nossos olhos, entramos em um mundo só nosso em que as as coisas só acontecem caso a gente dê a permissão. Antes de cairmos no sono, ficamos resolvendo situações mal resolvidas do nosso cotidiano. Esse acerto de contas com nosso self é essencial para que estejamos, no outro dia, de bem com a vida.

Tenho tido dificuldades para dormir. Aconteceu durante o último mês inteiro e agora também. Se duvidar, fico conversando com meu self a madrugada inteira e nunca chegamos a um acordo. A partir do momento em que os problemas atrapalham o meu sono, podem acreditar: A coisa está feia, punk, Britney Spears... (Fiquem com o termo que preferirem).

Não foi preciso muito esforço para chegar a conclusão de que o meu mal é mágoa. A mágoa se instala no coração, deixa tudo estagnado, a água parada e sujeita à proliferação dos mosquitos da dengue.

O coração da gente é um lar. Piegas? Talvez. Gosto de descrever o meu como um hotel em que não tenho clientes, mas visitantes. Ofereço a eles uma hospitalidade digna de cinco estrelas. Afinal, é um lar sem telhado, às vezes chove sem parar, então preciso compensar esses momentos. O importante é que a gente dê nosso melhor e eu costumo ser gentil além da conta.

O coração da gente tem vários quartos onde acolhemos os nossos queridos. Há quem deixe essas portas muito bem trancadas que é pra visitante nenhum fugir. Eu deixo as portas todas escancaradas, já que prezo a liberdade. E se o visitante quer trocar de hotel, tudo bem.

Nada de dramalhão. Tenho vontade de dizer Foi alguma coisa que eu fiz, céus, onde foi que errei?, mas aí penso, melhor não, beltrano já sofreu demais. Quer ir embora? Pode ir. 

Leve um casaco, está frio lá fora. Aí eu dou casaco, guarda-chuva, lembrancinha, sabonete do hotel, dou tudo que beltrano pode vir a precisar.

Ele vai embora.

Aí chega uma velha e conhecida inquilina.

— Mágoa!

 Matheus, saudades! Qual é o meu quarto dessa vez?

 31. 

Respondo com educação, mas quero xingá-la. Inquilina indesejada, fardo, voltou do inferno essa coisa horrenda, o que ela está fazendo aqui? Pego na mão dela, levo suas tralhas até o bendito 31. Ela mesma faz o favor de fechar a porta.

Quando quero dormir e não consigo, estou na verdade preocupado demais com a mágoa. É uma inquilina silenciosa, não faz barulho, está sempre em repouso, não quer dar trabalho. Não é como a euforia, que faz festas e incomoda os vizinhos (dizem por aí que é inveja).

A mágoa quase não sai do quarto, não conversa, é uma senhora previsível e mal amada. Dou tudo pra ela: Casaco, guarda-chuva, lembrancinha, sabonete do hotel, jujuba, livros... mas ela nunca demonstra satisfação, assim como nunca demonstra insatisfação. Sua indiferença me machuca, mas ela não se incomoda com nada além de si mesma.

Aí já dei tanta coisa pra ela que meu estoque fica vazio. Os alimentos? Dei todos para a mágoa, ela está muito bem alimentada. E agora, Matheus? Os outros visitantes já percebem que alguma coisa está errada e não querem que sobre para eles. Estão de saída, vão enfrentar o mundo.

No desespero, ligo pra beltrano. Ele atende, até tenta falar comigo, mas é impossível. Uma comemoração está rolando do outro lado da linha. Aí eu bato o telefone, com meu hotel à beira de uma falência.

Não tenho lá muitos dotes para a administração. Alguém precisava me substituir e a mágoa se ofereceu. A danada trocou a decoração, o papel de parede, os pisos. Até o telhado a criatura arrumou! Implantou uma ditadura: Ninguém mais entra. Ela, em poucos meses, já teve mais atitude que eu em quase dezesseis anos de administração.

Me escondi embaixo da minha escrivaninha (que agora era a escrivaninha da mágoa), rezando para que ninguém nunca me encontrasse, pois seria muita humilhação. 

Assim se torna realmente difícil dormir. Se alguém souber a fórmula mágica para aniquilar a mágoa, sou todo ouvidos.

Comentários

Postagens mais visitadas