Mágoa (pt. II)

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Ainda não sei sobre a fórmula mágica, mas talvez contando o que houve, você saiba.

A mágoa assumiu toda a papelada de gerência do hotel. Eu fiquei no meu canto sem dar um pio, pois não tinha o direito de criticar. Conforme ela cometia gafes administrativas e levava o hotel à falência, percebi que não podia aceitar aquilo tudo. E guiei meus queridos visitantes pra fora, onde estariam seguros. Poderiam alugar um trailer, sei lá. Apenas acelerei um processo que já era certo. O hotel faliu, mandaram derrubar. Meu coração estava desmoronado e eu só tinha a mágoa pra conversar.

Não tínhamos abrigo. Saímos nas ruas com malas na mão, a mágoa falando alto, amargurada, feito uma bêbada. Tentei manter o rosto impassível, o que foi um desafio por alguns dias porque ela não suportava a ideia de que eu estivesse tão calmo ou sem expressão diante de uma situação dessas.


— Ligue para beltrano. Talvez ele nos conceda um quarto em seu hotel. — sugeriu a mágoa.

— Não, não farei isso. Beltrano tem uma nova vida e está bem sem mim. Sem falar que você dará muitas despesas para o coitado, mágoa.


— Você está caindo pro seu orgulho, corra atrás de beltrano, talvez ele tenha tido motivos, talvez ele queira se retratar, talvez no fundo...

— Já chega, mágoa! "No fundo, no fundo, no fundo", isso é um saco. Pra toda merda que fazem tem que dar uma desculpa que começa com "no fundo" que espante a realidade. Mas a realidade é apenas esta e foda-se o que está no fundo. Falam muito sobre tudo que está lá, mas já percebeu que ninguém dá a devida importância ou você se faz de tonta?

A mágoa fez cara de sapo, indignada, seguiu com seu protesto e seu discurso melodramático. E ela nunca desistia, como era apegada essa mágoa. A mágoa é uma puta, baby, que nunca sabe a hora de parar.

Preciso comentar que ela comia demais. Sempre sentia fome, estava ficando enorme, gorda, obesa e mais insuportável que nunca. Era um fardo, simplesmente comecei a correr dela. Ela corria atrás de mim como se eu fosse um netinho muito querido cuja presença valia ouro. Fui me metendo entre as pessoas, as multidões, a mágoa me achava, não me perdia de vista, corria demais para alguém tão pesado. Conseguiu me alcançar em um cruzamento, e quando o sinal ficou verde e um dos carros deu a partida em alta velocidade eu peguei a mágoa pelo pescoço e joguei-a na frente dele. Estava agora estatelada no chão, enorme como nunca, fria.

Chorei um bocado. Peguei minhas malas, caminhei de volta pro lugar onde antes ficava meu pequeno hotelzinho simples por fora, enorme por dentro. Agora me restava um terreno baldio, destroços e mato. O pessoal que alugou o trailer voltou e prometeu ajudar. Hora de cortar o mato, hora de começar de novo.

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