Olhos de enxergar


"Para que tenho olhos?" pergunto a mim mesma, embora meus olhos não perguntem nada. Lá fora, me sinto desprotegida. Os bancos são hostis, os banqueiros são hostis, os vizinhos são hostis. E a propaganda, garota esperta, sabe aproveitar este deslize, esta falha tectônica no caráter do homem. Quem inventou o marketing pôr-se-ia surpreso com a habilidade da máquina midiática de se dirigir a humanos como se não se dirigisse a humanos.

O clima é hostil, não posso contar com a natureza. A natureza está cansada de mim. Lá fora, ela é implacável. Se preciso de farinha para um bolo, vou em um pé e volto noutro. Não faz bem se demorar fora de casa nesses tempos perigosos, encardidos da consciência humana. A fila do caixa é grande, então desisto da farinha, desisto do bolo, fecho a porta, tranco a sete chaves, a recuperação é instável, os pulmões querem me matar, querem pular da minha barriga, eu quase sinto o coração na garganta. 

Em casa, estou desnuda e ainda frágil. As paredes são hostis, as velas são hostis, meus livros são hostis e parecem gritar comigo. Não me reconheço, não reconheço nenhum deles, nunca os li nem lerei. Nunca li a mim mesma, não há livros sobre mim, garota ordinária, opaca, não se entende. Queria eu era ser tartaruga, e andar pela vida contemplando, sem pressa, a beleza de cada molécula. Muito melhor que andar pela vida com a impressão de nunca tê-la conhecido.

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