a história, a vida e o sobrenome que roubaram de mim

sua família veio da Europa nos anos 1910. como vocês talvez saibam, o governo brasileiro estimulava, àquela época, a vinda de imigrantes europeus, como uma forma fácil de conseguir mão-de-obra barata e, ainda por cima, encabeçar um projeto de embranquecimento da população, majoritariamente indígena e escrava. seus avós eram alfabetizados e não demoraram a entrar em alguma universidade. a família toda ganhou terras do governo e ascendeu economicamente. seus avós fizeram mestrado e doutorado. seus pais são pós-graduados. uma tia-avó escreveu um livro contando tudo sobre a história da sua família, desde a vinda ao Brasil até os anos 2000. você é um personagem dessa história. você tem uma história, sabe de onde veio e aonde quer ir.

eu me pergunto como é ter uma história. como é a sensação?

não existem livros sobre a minha família que contem a minha história. minha mãe, uma mulher preta, foi abandonada na porta de uma senhora branca que viria a ser a minha vó. minha vó trabalhava como governanta na casa de gente poderosíssima em São Paulo. iludiu-se: achou que havia ela, também, ascendido economicamente. tentava nos ensinar (aos seus netos) a etiqueta das refeições da casa dos ricos, e ralhava com a gente se errássemos. sem nenhum motivo aparentemente, detestava uma amiga preta da minha mãe. escondia as comidas na geladeira, pois dizia que a faxineira estava de olho e queria pegar pra se alimentar. essa mulher, que se dizia minha vó, não existe mais. e levou consigo todo a minha história. levou os segredos da família para o túmulo. sua outra filha, minha tia, se prostituía pra fugir de casa e deixava seus filhos com a minha mãe, outra criança. meus avós paternos, já falecidos, não eram alfabetizados. também não conversavam sobre a nossa história, ninguém pensava sobre isso, sobre história. meu avô só sabia a linguagem dos resmungos e da violência. seu filho, meu pai, não completou a escola.

eu me pergunto como é isso, ter uma história. como deve ser saber que você tem um lugar no mundo? e não imaginar a própria vida fragmentada, descolada do lugar em que se cresceu? de onde vem a minha família e qual é o meu verdadeiro sobrenome? como é a sensação de saber de onde veio e aonde se quer ir?

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