daquilo que não é possível simbolizar (ou a torre atingida pelo raio)

numa dessas limpezas de gaveta eu encontrei você. já fazia um tempo desde a última vez. havia muitas coisas naquela gaveta das quais eu nem me lembrava mais. havia tantas cartas que eu gostaria de ter escrito. havia uma carta de tarô que eu deliberadamente escondi de mim e de você. e também havia você.

havia um certificado de um curso que fizemos juntos e que eu já tinha me esquecido de colocar no currículo. aqueles dias tinham sido apagados da minha memória. eu já não me lembro de como era estar com você e aqueles dias trazem algo de palpável sobre isso. subitamente, no contato com aquele papel grosso e pardo, tamanha foi a onda de lembranças que fui acometido por um mal estar. é que eu lembrei de muito do que eu já havia esquecido. e até muito do que eu nunca tinha desejado esquecer, mas precisava. eu tinha me esquecido de que sorria pra você durante as aulas ou fazia uma careta pois sabia que você riria. eu me lembrei dos traços do seu olhar fixados atentamente no professor e me lembro de admirar tanto você. e agora me lembro do seu bloquinho de notas e da sua caligrafia um tanto torta, das brincadeiras com a lista de presença e dos lanches que fazíamos ao descer pro intervalo: eu com meu pãozinho na chapa, você com seu café. depois a gente subia... voltávamos a subir aquelas escadas. a melhor parte da experiência era poder subi-las com você.

teve um dia que você não veio e eu quis fazer uma daquelas tiragens que você desaprovava, e não importava o quanto eu embaralhasse o tarô, a torre atingida pelo raio era a única carta que se apresentava. e embora eu no fundo entendesse, descartei a minha intuição como sempre fiz quando me foi conveniente. não que tenha dado tão certo assim, pois eu tinha sonhos lúcidos com aquela torre. eu lembro que havia destruição, pânico e algo ruindo. alguém ruía, talvez um edifício. em alguns desses sonhos, havia tempestade e havia também labaredas, que materializavam o apocalíptico dos meus receios. a hecatombe do teu afeto intraduzível. a catástrofe do teu impossível. nunca estivemos tão longe um do outro. você estava indo embora e nós não iríamos conversar sobre isso. em um dos sonhos, eu desabava da torre. eu sabia que o fogo consumiria tudo e que não haveria espaço para as lembranças. lembranças das nossas brincadeiras, dos teus sorrisos, do teu café e do meu pãozinho na chapa. não tem mais espaço, meu bem. eu sabia que não poderia restar nada, e você me puniu por saber.

então tinha a carta da torre escondida. mas tinha tantas outras cartas naquela gaveta. as cartas que eu não havia escrito. e quanto ao meu impossível? aquilo que não se deixa dizer? ah, minha madrinha, eu queria que servisse de alguma coisa se eu dissesse para que largasse esse homem que te julga e te apequena e te distancia tanto da potência de mulher que você é. aliás, meu pai, eu queria que fosse razoável pedir pra que me aceitasse e que me amasse mas nós nunca conversaremos sobre isso. queria que valesse de alguma te dizer, mãe, que não consigo perdoá-la por seus erros. já tentei tanto, mas não consigo deixar de te manter tão longe. queria que valesse de alguma coisa dizer àquele garoto que eu quase amei que eu sinto muito por não ter sido suficiente. ao meu findado amor, queria voltar no tempo e ter perguntado se ele me achava feio ou se achava que tinha algo de errado comigo. queria que fosse possível perguntar ao universo o sentido da existência. mas daí talvez eu desejasse ser surdo, pois não é toda e qualquer resposta que eu gostaria de ouvir.

tenho a sensação de que coleciono tudo que não digo. que me sou feito de sonhos que me derrubam de uma torre. que guardo os momentos com você para que um dia eu possa me lembrar. pra quem sabe um dia, finalmente lembrar e não me sentir um ser tão faltante. preciso lembrar e preciso esquecer e preciso ruir pra me libertar do teu impossível: da torre. do que não fomos. do que não vivemos. sobretudo, do que você nunca disse.

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