Invasão bárbara

Vou te contar tudo sobre aquela noite em que eu me tornei só mais um prato ornamentado na sua cristaleira. Ou quase tudo sobre aquela noite em que eu nunca quis que você partisse. Aquela noite em que você povoou meu imaginário de talvezes. Aquela noite parecia eterna e você era um encantamento, a sua voz era mágica, as suas mãos eram amenas e o seu corpo era o meu paraíso. Eu não entendia absolutamente nada do que você dizia e eu sei que pode parecer um grande exagero eu dizer isso, mas hoje compreendo que a linguagem mais importante daquela noite era a não dita. Um gesto, um olhar, o medo. O medo que cala. Você é péssimo com linguagem não dita, garoto. Naquela noite, você não viu limites.

Eu não queria que tivesse sido você. Naquela noite que mais parecia eterna, você era minha lua, o meu ponto de referência e o meu norte, mas você era um estrangeiro nas minhas terras. E como eu descobriria com o tempo, você nunca seria nada além de um estrangeiro nas minhas terras. Não queria que você tivesse chegado tão perto, sabia que tinha que ter uma distância, que aquela não era a estação certa pra você, que chovia muito em mim uma chuva que eu não poderia confessar. Você veio andando no meu território como se conhecesse tudo e eu tive medo de te afastar e te perder numa nuvem, num vulcão, num sonho. Eu fiquei parado assustado sem saber como dizer pra você dar meia volta, porque talvez se você desse, então nunca acharia o caminho de volta quando fosse seguro me encontrar. Eu aí eu te disse, eu te disse que não deveria passarmos daqui, desta linha, mas você ousou me tranquilizar e eu era só medo e desamparo.

Você não passou por nenhum pedágio. Você não precisou nem de visto nem de passaporte. Você não passou nem pela alfândega. Você só passou, um pouco de pressão e eu cedi ao seu terrorismo travestido. Você era o turista, viu tudo que tinha pra ver, viu os limites do meu país e depois foi embora, como qualquer turista. Você nunca voltaria. Você não mais me escreveria. Eu te escreveria no seu aniversário, mas você nunca voltaria. Eu seria só mais uma terra que você pisou quando eu deveria ter sido mais atento, deveria ter percebido, deveria ter avisado, deveria ter reforçado as fronteiras, falado sobre segurança, conforto. O deveria me mata. Declarei luto oficial por uma semana, mas estou até hoje, não oficial. Lutando contra a sensação de descarte, de invasão bárbara, me dizendo que o problema não sou eu e que você é pássaro e quer voar pelo mundo. Eu não tenho problema nenhum com nisso, voar é ótimo.

Não te dei consentimento para entrar. Eu ruí quando você saiu. Ainda é noite em mim.

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