carta para a minha avó

minha avó foi a pessoa mais dura que já conheci. era tão dura e teimosa que isso nem era bom pra ela. sinto que, de alguma forma, me inspirei em sua figura imponente, rígida e desconfiada. tinha medo, certo assombro, e ao mesmo tempo alguma admiração.
mas o tempo passou e nossa relação nunca mais foi a mesma. as páginas da nossa história tornaram-se amareladas, com orelhas, rasgos, falésias, acidentes geográficos. de alguma forma eu sabia que nunca mais seríamos os mesmos. durante minha adolescência, conforme a inocência me deixou e passei a questionar seu mau humor, sua grosseria e ingratidão para com aqueles que a amavam, fui de seu netinho favorito a uma das posições mais sombrias em seu coração. ou pelo menos assim eu imaginava e, confesso, não lamentava muito. indo embora pra São Paulo, onde constantemente se isolava de tudo e de todos (e vivia dizendo que estava melhor sozinha), deixou uma praga nos braços da minha mãe: "um dia o Matheus lhe trará uma grande decepção". sua frase ganhou novos significados dois anos depois, quando me assumi pra minha família, e todos se lembraram de como ela estava certa.
recebi hoje a notícia do seu falecimento e não sei bem o que é esse texto. acho que tenho mágoas demais para tornar esse texto uma homenagem. da admiração que eu tinha por ela, não me restou nada além de pena. pena por ser tão orgulhosa a ponto de nunca pedir desculpas. pena por ter afastado e machucado todos aqueles que queriam estar por perto. tristeza por ter morrido solitária, recusando o afeto de todos que se importavam com ela.
minha avó foi a pessoa mais dura que eu conheci e isso nem é uma coisa boa. ela disse para a minha mãe e minha tia, suas filhas legítimas, que não tinha tido filha alguma. tudo por mágoa, por rancor. mas também sei que era capaz de sentir coisas grandes em seu coração. não vou me esquecer do seu último e único gesto de amor do qual tenho lembrança. há dois anos, muito doente, em uma rara visita à casa dos meus pais, sentou comigo à mesa e me perguntou se eu me lembrava da toca do Gugu. quando criança, ela havia me presenteado com uma casinha daquelas que você entra dentro. fiquei tão feliz nesse dia que fiquei procurando por algum presente para retribuir. e o que fiz? dei a ela de presente a carteira do Flamengo da minha outra vó, Damiana.
então, ela puxou a carteira do Flamengo e me mostrou, como dizendo que usava até hoje. minha avó, corinthiana roxa.
nenhum "eu te amo" estaria à altura daquele gesto.
tenho e-mails da minha avó não respondidos na minha caixa de entrada. perguntavam como eu estava, como estava a família. tenho também lembranças das nossas brigas, do dia em que defendi minha irmã de uma acusação injusta feita por nossa avó, que me deixou tão enfurecido que optei por expulsá-la de casa, lembrando a ela por qual motivo ninguém a tolerava. tenho lembranças de respostas malcriadas e da sua expressão carrancuda de quando me olhava. mas infelizmente, tenho apenas uma única lembrança de amor. hoje, no dia da sua morte, isso me faz pensar em como tudo poderia ter sido diferente. mas sei que a senhora fez as suas escolhas, vó, e eu fiz as minhas também. todos nós fizemos. eu me sinto triste porque gostaria que a senhora tivesse tido um final feliz. acho que eu poderia ter contribuído pra isso. mas a nossa história me deixa de ensinamento que às vezes o amor é tudo, mas outras vezes ele não é suficiente. sozinho, ele quase nunca é.
eu te amo, vó. nunca lhe disse isso antes, mas também não pretendo romantizar o passado. sei que te amei nos meus limites e que não tolerei ser menosprezado. você não foi o que esperavam de uma mãe ou de uma vó, e isso deixou marcas em seus filhos e netos, mas nossas expectativas morreram com você. e agora você está definitivamente livre e não precisa contemplá-las. espero que, por fim, você encontre paz e descanso.

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