As duas mortes da sra. Menezes

a senhora menezes espera o marido que foi pra guerra há quarenta e quatro anos. ela não faz nada da vida — ou pelo menos nada que o sistema capitalista em que foi criada enxergue como útil. passa os dias tricotando e rindo consigo mesma, porque ela tem memórias. e o seu marido é homem de promessa, ah, ele nunca falhou com nenhuma, ela garante! jamais falhava, o seu marido.

a senhora menezes passa o dia todo de frente para a televisão, que está sempre ligada em algum noticiário, novela ou reality show. senhora menezes, você viu o que aconteceu na inglaterra? não vi, filha. mas acabou de passar na tevê. o terremoto, né? não, senhora menezes, o incêndio em londres. em birmingham? em londres. ah.

às vezes a tevê está surpreendentemente ligada em um jogo de futebol. a senhora menezes, se questionada, não sabe responder. quem está jogando, dona menezes? não sei, filha, daqui eu não enxergo. mas então por que a senhora vê? eu gosto de ver a bola passando. mas a senhora enxerga a bola? enxergo, que não estou no fim da vida: eu vou até os cem! acredita em mim? acredito, dona menezes. estarei viva até o antônio voltar, que ele me prometeu. acredita nele? acredito, filha, esse homem me ama muito.

e ela passa o dia todo tricotando.

tricotando.

t-r-i-c-o-t-a-n-d-o.

tem dias que a senhora menezes acorda com a sensação indiscutível de que finalmente seu marido vai voltar, aquele seria o dia: ela faz café, passa perfume, serve biscoito pras visitas — até dá umas risadinhas. ela assa um bolo e diz que chocolate é o sabor preferido do seu antônio, ela lembra. quando já é tarde, senta-se em sua cadeira de balançar, vira ela de frente pra porta da frente. ela cochila, mas acorda ao mínimo ruído achando que é o marido que a casa volta. se acorda no dia seguinte, não lembra de nada.

seu marido não voltou, dona menezes. é que ele vem na semana que vem. na semana que vem? é, é que aconteceu um imprevisto. o que aconteceu? eu não sei, só sei o que ele me disse que vai voltar. então a gente espera? esperamos sim, filha, que ele volta, tem que ter paciência com ele, que ele foi pra muito longe. mas já não deveria ter voltado? não, filha, quem decide essas coisas é Deus.

pelas costas, todos zombam da senhora menezes, popular entre as mesas de bares: maldade comum em cidades pequenas. a dona menezes não nada fez pra eles, mas, de alguma forma, a infelicidade e mediocridade daquela senhora é importante para seus vizinhos. a dona menezes é tão mal vista pela sua bizarrice que as mães querem que seus filhos passem longe da casa dela. é que suspeitam que ela seja da macumba. a senhora menezes não tem amigos e seu único assunto é o seu marido que vai voltar. ele vai.
ele vai.

a senhora menezes nunca cansa de tricotar para o marido, fazer biscoitos, ver as últimas da tevê. essa tem sido a sua rotina por quarenta e quatro anos.

quarenta e quatro anos.

um dia, encontro a senhora menezes chorando. se pergunto o que houve, ela para de soluçar instantaneamente e me encara com seus olhos vermelhos, sua pele enrugada. sinto um arrepio e sou tomado pela sensação de que a senhora menezes sabe que é miserável. ela me olha bem no fundo dos olhos.

você acha que não sei a verdade? que verdade? meu marido não vive mais. ele não disse que voltaria? ele mentiu. mas a senhora não confia nele? as pessoas mentem. e por que a senhora ainda espera? e vou fazer o quê, continuar vivendo como se nada tivesse me acontecido? aproveitar a vida, que a morte é próxima. não, minha filha, a morte já me aconteceu há muito tempo, há muito tempo que sei, que eu recebi a carta. a senhora nunca me falou da carta. é que eu gosto de fingir que não sei. e funciona? às vezes, filha, às vezes.

mas agora eu sei no que está pensando a senhora menezes quando presta atenção ao noticiário sem assimilar uma palavra do que acontece no mundo. o incêndio em Londres não tem importância para ela, que aquele não é seu mundo, nem sua geração.

a senhora menezes não tocou mais no assunto. no outro dia, assou biscoitos. a senhora está esperando o marido? sim, minha filha, ele disse que volta na semana que vem. a senhora está ansiosa? ansiosa como nunca, há tempos esperando por este momento, devo finalmente encontrá-lo. e como a senhora sabe disso? é homem de palavra o meu marido, se ele disse, é o que vai acontecer.

a senhora menezes morreu quando foi a outra semana. não recebeu uma única homenagem em seu enterro. não teve flores, nada, que a senhora morreu solitária e nutrindo uma falsa esperança. a morte da senhora menezes na verdade foi a segunda, que a primeira foi em vida. ninguém desta geração conheceu a senhora menezes.

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