Tem de haver uma saída!

uma senhora sentada solitária a uma mesa na rodoviária comia um lanche e cantava o i wanna break free, constantemente em dúvida se comia ou se cantava, que as duas atividades lhe exigiam a boca. cinquenta e quatro anos e virgem da boca. que aquilo homem nenhum tirava dela.

— amiga, aí adivinha o que ele fez?

— ai, me diz que ele te beijou!

— para, marcela, tô te contando uma história, não um milagre!

e ria-se dolorida com suas amigas na adolescência. soltou um risinho porque tinha memórias. se calou. ao mínimo movimento olhava pros lados. assustava-se com o barulho da descarga do banheiro porque fazia um barulho desgraçado. o banheiro masculino. além-porta, homens faziam xixi. xixi. que horror. ela sabia que ele podia estar em qualquer lugar, o homem que a faria perder os cabelos, chorar noites consecutivas com a cara enfiada no travesseiro. um dia ele haveria de vir, e ela estivera fugindo dele a vida toda.

a sua avó era centenária e dizia em tom pejorativo que ela deveria ter sido freira. mas era senadora. senadora virgem da boca não haveria de existir. no curriculum vitae de qualquer político precisa constar a sujeira de quem se entrega aos pecados da carne. que mesmo na concepção cristã vai muito além de sexo. que só quem tem dentro de si a sujeira sobrevive a ambientes igualmente moralmente insalubres. se era virgem da boca, a sujeira fora introduzida nela de outra forma e por isso era senadora. virgem coisa nenhuma.

dias após o aparecimento da senadora eu quis sentar na mesma cadeira que ela. não no senado, na rodoviária. quis imaginar como seria ser ela, ser virgem da boca. ei, eu sou importante. eu sou senadora. senadora! por que você me ignora, eu decido o futuro do país, alberto! você nunca vai passar fome, alberto, que eu tenho muito dinheiro e posso te dar tudo!

mas se eu fosse astronauta, então olharia pra mim? eu olharia pros olhos de todo mundo e veria estrelas neles. que perigo. ficaria doida. como se olha pra alguém depois de ter pousado na lua? não se olha. um relacionamento em crise depois de ter pisado em marte? não significa. não se olha pra ninguém do mesmo jeito depois que se vê o universo de dentro dele. depois que se vê a terra tão pequena. que perigo. que perigo.

alguém apertou meu pescoço, que perigo. me solta! me solta! me solta! que eu compreendi a senadora, bem no momento daquele assalto. que sua ânsia em manter-se para sempre da boca virgem resultava experimentar tudo como se fosse a primeira vez. se ela era velha e experiente, que ao menos a boca dela fosse criança inocente.

não era ninguém aquela senadora, e ela sabia disso. que perigo. que perigo.

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