Maria tinha nome de passarinho



Era só um retrato na parede, Maria, e como doía.

O marido morrera na noite anterior, ela mal percebeu. Até pensou ter ouvido um ruído gutural, animalesco vindo do homem que há trinta e cinco anos dormia ao seu lado, mas ela não se movera. Abriu os olhos na calada da noite; permaneceu estagnada, de costas pro homem que agonizava, até se debatia. Supôs que o marido estivesse tendo um pesadelo, mas não que ela tenha perdido muito tempo especulando. Maria não fez nada porque não quis. Voltou a dormir, voltou a sonhar, que esse momento ninguém poderia tirar dela.

Talvez se tivesse se preocupado em decifrar o que vinham dizendo as mensagens não-verbais do marido nos últimos meses, pudesse ter evitado tudo. Ela sabia, mas fingia crer que não sabia. Os tiques nervosos,  os acessos de raiva por nada, o constante estado de descontentamento, os maus hábitos alimentares, as horas extras para pagar as contas. O homem se matou e ela era viúva e conivente, a assassina que seria julgada quando chegasse ao céu se nele chegasse, se a culpa não a pegasse e a fizesse descer antes.

Maria foi ao enterro do marido, mas não chorou. Não retirou os óculos escuros em momento algum, pois não queria que decifrassem a expressão de assombro em seu rosto, expressão que tampouco ela conseguia definir. Estava livre. No auge dos setenta, sentia que algumas rugas tinham-na abandonado, estas que só se instalam em rostos sofridos, cansados. Ela não era mais uma cansada.

E pensar que ela perdera tanto tempo da vida acordando, estudando, dormindo, acordando, estudando, dormindo, para um dia simplesmente poder acordar, trabalhar, dormir, acordar, trabalhar, dormir. Agora era como se, muito perto do fim, a vida resolvesse ironicamente desabrochar uma milésima vez e tudo fosse vivo de novo. Não que estivesse feliz pela morte do marido, o homem que não amava. Era um pouco por isso e não era. A verdade é que essa coisa de mortalidade mexe com a gente.

As mortes e os partos a assustavam mais que qualquer coisa. Nada a assustava como os términos, os fins. A solidão. Era como se fosse o modo da vida lembrá-la de que também era efêmera, como o amor. Precisava se reproduzir. Ela ia morrer. Mas o fato de não saber lidar com a morte não impediu que o fim se apossasse das mais variadas esferas do seu corpo. Fingir que a morte haveria de estar longe tampouco resolveu.

E como todo dia se acaba um pouco; na tristeza, na dúvida e no desejo, Maria esfriava, esfriava, esfriava...

O marido de Maria morrera. Ela foi ao velório, mas não chorou. Maria permaneceu em pé de frente ao caixão, inabalável. Não tinha mais referências, possivelmente seria a próxima. Mas ela não se importava mais com isso, não tinha mais medo, conquanto que não morresse como os outros, como o marido. Maria tinha nome de passarinho, não poderia ser diferente. Nascera pra cantar, pra ficar livre. E aquele corpo não lhe servia mais, no fundo ela sentia. Porque ainda era jovem no espírito, era mais que aquela carcaça de pele que restou de sua juventude. Maria transcendia, ah, como é verdade que essa coisa de mortalidade mexe com a gente.

Todos choravam no velório e ela sorria. Não que estivesse feliz pela morte do marido. Era um pouco por isso e não era. Maria vislumbrara o fim. A poesia daquele momento inundava sua vida inteira.
photo by Orion Carloto

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